O velho general

Sempre que chegamos perto do dia dos pais, ou das mães, dos avós e, principalmente, no Natal nós vemos por aí declarações de amor, o corre-corre nos shoppings para presentear os entes queridos e a felicidade estampada em campanhas publicitárias. Mas será sempre assim? Será que temos uma família de comercial de margarina, onde todos se amam e se respeitam? A sua eu não sei mas, com certeza, a do velho general não era assim.
Todos os domingos realizava-se o mesmo ritual: após levar seus cães para passear, o velho general colocava seu Opala preto para fora da garagem e, junto com seus filhos, lavava-o com todo o esmero possível. "Molha aqui", "esfrega aqui" - ordenava o general enquanto se encarregava de lavar o alto do seu possante (os meninos ainda eram pequenos e não alcançavam), cantarolando os sucessos de Nelson Gonçalves.
Vira e mexe algum vizinho aparecia para puxar conversa, o general pouco prestava atenção. Respondia por monossílabos, exceto quando a conversa era sobre seus dois assuntos preferidos: o Opala e o período militar.
Sobre o carro, ele mostrava o barulho do possante motor, o conforto do interior impecavelmente asseado e a estabilidade garantida à base de trocas e manutenções constantes de molas, amortecedores e pneus. Era notório seu amor por aquele bólido.
Sobre o período militar ele enumerava saudoso os benefícios da época em que os militares comandavam o país. Apontava como o país estava caminhando para o caos sob o regime civil. "Agora temos ladrões dentro e fora do governo!", vociferava enquanto cuspia no chão.
Mesmo assim não se distraía do trabalho imposto aos filhos. Ora tinha que interromper a conversa para chamar a atenção. "Cidinha, não use tanto sabão, sua tonta!". "Carlinhos, fecha a droga da torneira quando não estiver usando, é você quem paga a conta de água aqui?", "Dodô, diacho, eu já te falei que não é assim que se esfrega um pneu, porra!".
Com o Dodô ele tinha um jeito todo especial de agir. Certo dia, ele tomou a esponja da mão do garoto, esfregou com força o pneu para mostrar como fazia e depois esfregou a esponja na cara do menino. Dodô ensaiou um choro mas logo foi advertido pelo pai. "Você vai chorar moleque? Sabe muito bem que vai ser pior se fizer isso, não é?". Dodô enxugou as lágrimas do rosto e esfregou o pneu do carro com força. Sentado em frente à minha casa, eu podia sentir a raiva do garoto, pegando a esponja e cerrando-a na palma da mão, mergulhando-a com força no balde sabão e jogando-a contra o pneu do carro. Seu pai simplesmente ignorava e voltava a conversa.
Pouco sabia sobre os três irmãos. Estudavam no Colégio Militar, para o orgulho do pai, e só os via chegando já tarde para casa ou aos domingos quando tinham de lavar o carro do pai. Raramente, os via  entrarem no carro para algum passeio em família, enquanto general recomendava: "Limpem os pés antes de entrar, nada de ficar pulando no banco e não coloquem as mãos imundas nos vidros!". A insatisfação em ter intrusos dentro do seu carro era evidente. O resto era um mistério para mim e para meus colegas de brincadeira na rua. Mas houveram duas situações que foram marcantes para mim. Uma, foi num dia em que eles chegavam do colégio e nós estávamos jogando bola na rua. Um chute errado e a bola foi cair na área do general. Dodô foi correndo, entrou pelo portão e com um chute jogou a bola por cima do portão. Pude notar seu sorriso de satisfação enquanto a figura do pai aparecia na janela. "Dodô, já para dentro! Já não te falei para não dar conversa para esses marginais?". Dodô entrou cabisbaixo enquanto ouvia os impropérios do pai. Não sei o que aconteceu, mas minutos depois eu podia ouvir os estalos de cinto, xingamentos e promessas de punições mais severas.
Sempre que o general disciplinava seus filhos eu ficava me perguntando porque a mãe deles nunca fizera nada. Nas costas do marido, dona Cotinha era um amor de pessoa, falava com a vizinhança e não se importava que jogássemos bola em frente a sua casa. "Só tomem cuidado para a bola não pegar no carro, senão vai ser um deus-nos-acuda", nos advertia; mas perto da hora do marido chegar, ela corria  para se trancar em casa e pôr a mesa do jantar.
Passou-se anos e num dia já próximo do fim do ano, estava chegando do colégio quando ouvi o estrondo de vidro estilhaçando. Parei para ver a cena. Dodô havia arremessado uma pedra no pára-brisa do carro de seu pai enquanto amaldiçoava. O carro e seu pai. "Por que você não foi embora com seu maldito carro e não me deixou em paz!?", "Por que você não trepa logo com ele e me esquece!?" Vi um Dodô transtornado e trêmulo vociferando aquelas palavras.
A vizinhança não demorou a se reuniu para ver o circo, o general saiu com os dentes cerrados, a mãe e os dois irmãos saíram atrás. O velho e seu filho se encontraram na garagem de casa.
Por causa do burburinho da vizinhança não pude ouvir o teor da discussão, mas os gestos exaltados e os dedos em riste denunciavam a situação. Dodô então pegou uma mochila, colocou nas costas e saiu batendo o portão de casa.
"Eu não quero te ver nunca mais aqui, seu imprestável! Você morreu prá mim, ouviu? VOCÊ MORREU PRÁ MIM!!!" Vociferava o general enquanto Dodô sumia subindo a rua.
Nunca mais tive notícias suas.
Os anos passaram e Cidinha formou-se em medicina. Hoje serve a Marinha, viaja quase durante o ano inteiro e mesmo quando está aqui não pára em casa. Carlinhos também seguiu a carreira militar, casou-se, teve filhos e só aparece na casa dos pais quando um deles tem alguma crise de saúde ou no Natal, mesmo assim fica por pouco tempo e vai embora. Ainda assim, os dois são o orgulho do general que faz questão de contar para todos como os criou dentro da ordem e disciplina e como hoje são bem sucedidos. Ninguém ousa perguntar sobre Dodô porque deste ele não fala palavra.
Mesmo tendo mudado para longe, tenho notícias que o velho general ainda mantém o mesmo hábito aos domingos: voltando do passeio com seus cachorros, coloca o amado carro para fora da garagem e lava-o com o mesmo esmero de sempre. Só que agora, sozinho.

Comentários

  1. Voce agora me levou a minha infancia e adolescencia, pai militar, regime severo em casa, que de nada adiantou! Mais tenho saudades do meu velho pai!!

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